Quem Conta a História? Reflexões sobre Anatole France, Dom Casmurro e Laurentino Gomes
A frase de Anatole France, “Nunca ouvimos o lado do diabo da história, Deus escreveu o livro todo”, é uma crítica incisiva ao monopólio das narrativas históricas. Para France, a história, assim como qualquer narrativa, é escrita por quem detém o poder, e aqueles que são considerados "o outro", o "diabo" ou os vilões, são silenciados. Essa reflexão se desdobra de forma fascinante em diversos contextos, seja na literatura de Dom Casmurro de Machado de Assis ou nas análises históricas de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil.
O Caso de Capitu: Silêncio na Literatura
Em Dom Casmurro, Bentinho narra a história sob sua ótica, carregada de insegurança e ciúme. Capitu, sua esposa, é acusada de traição, mas nunca tem a chance de contar sua versão. Sua voz é apagada, e tudo o que sabemos dela vem da perspectiva de Bentinho. Capitu torna-se, assim, o “diabo” de sua narrativa – alguém que é julgado e condenado sem direito de defesa. Machado de Assis, ao construir essa narrativa ambígua, nos desafia a questionar a credibilidade do narrador e, por extensão, o próprio conceito de verdade nas histórias que consumimos.
Essa construção espelha o que Anatole France denuncia: uma história incompleta, em que apenas uma versão é ouvida. O leitor, assim como o historiador crítico, é chamado a imaginar o que Capitu poderia dizer se tivesse a chance de contar sua história. Será que ela é realmente culpada, ou sua culpa existe apenas na mente de Bentinho? Esse é o poder de uma narrativa unilateral: ela molda não só os eventos, mas também a percepção de quem a consome.
Escravidão: A História Contada pelos Senhores
Laurentino Gomes, em obras como Escravidão, aborda essa mesma questão em outro contexto: a história da escravidão no Brasil. Ele ressalta como essa história foi escrita majoritariamente pelos brancos, os senhores de engenho, comerciantes de escravizados e intelectuais europeus que justificavam o sistema. A perspectiva dos negros escravizados foi deliberadamente ignorada ou distorcida, criando uma narrativa que humanizava os opressores e reduzia os oprimidos a números ou objetos de trabalho.
Os negros escravizados, no entanto, não foram passivos. Houve resistência, fugas, revoltas e a criação de espaços de liberdade, como os quilombos. Mas essas histórias de luta e resiliência, quando registradas, eram vistas sob o olhar dos opressores, que as retratavam como ameaças à ordem. Assim, a história da escravidão foi moldada por aqueles que tinham o poder de escrever e perpetuar suas versões, apagando ou marginalizando o lado das vítimas.
O Poder da Narrativa e a Busca pela Verdade
Seja na ficção ou na historiografia, a frase de Anatole France nos faz refletir sobre o poder das narrativas. Quem conta a história molda o mundo: define quem é o herói e quem é o vilão, quem merece voz e quem deve ser silenciado. O “Deus” que escreve o livro todo pode ser qualquer sistema ou grupo que detém poder suficiente para controlar a narrativa dominante.
Capitu, na literatura, e os escravizados, na história, representam o “lado do diabo” que raramente é ouvido. Mas ao revisitar essas histórias com um olhar crítico, podemos corrigir essas injustiças narrativas, dando espaço para vozes que foram silenciadas e reconstruindo uma história mais plural e verdadeira.
Conclusão
A reflexão de France e os exemplos de Machado de Assis e Laurentino Gomes nos convidam a questionar as narrativas que consumimos. Será que estamos ouvindo todos os lados? Ou apenas as vozes de quem detém o poder? Para construir um mundo mais justo, precisamos reconhecer que toda história tem múltiplas perspectivas. E cabe a nós ouvir até aquelas que foram propositalmente apagadas.
Afinal, como France nos lembra, o livro da história nunca está completo enquanto um lado permanece em silêncio.
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